Victor Muller teria passado por universidade para chegar ao Tribunal Penal Internacional e espionar investigações sobre crimes de guerra em ações militares da Rússia
O sotaque de Victor Muller soava esquisito, e pertencia a um homem que foi apontado como um suposto espião russo que estudou na prestigiada Escola de Estudos Internacionais Avançados (SAIS na sigla em inglês) da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, um programa de pós-graduação de elite que é escolhido por militares, jovens diplomatas e, de acordo com fontes, futuros espiões.
Sociável, gregário, inteligente e muitas vezes visto carregando um capacete para a sua amada moto, “Muller” era bastante conhecido, e até mesmo querido, por seus colegas estudantes e da faculdade na SAIS. Mas o seu sotaque confuso chamou a atenção de alguns colegas de classe. Numa ocasião, um estudante lhe perguntou: “Você é russo?”.
O espião fugiu da questão. Dizia que era brasileiro, uma resposta que se revelou parte de um elaborado disfarce que ele passou anos construindo.
“Olhando para trás, isso era um sinal vermelho”, o ex-colega que fez a pergunta contou à CNN, falando sob condição de anonimato. “Lembro-me de pensar na época que a resposta dele não fazia sentido”.
“Muller” concluiu o mestrado na SAIS em 2020. Na semana passada, uma agência de informação holandesa identificou-o publicamente como Sergey Vladimirovich Cherkasov, um oficial russo de informação militar que, em abril, viajou para a Holanda para iniciar um estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia.
Ali, ele teria a incumbência de espionar investigações sobre crimes de guerra em ações militares russas na Ucrânia e outros lugares, dizem as fontes.
As autoridades holandesas o detiveram na fronteira e o enviaram de volta ao Brasil, onde vivia sob a identidade falsa de um homem brasileiro, Victor Muller, cujos pais já haviam morrido, segundo a polícia brasileira.
Não se sabe exatamente quando os Estados Unidos souberam da verdadeira identidade de Cherkasov. De acordo com uma fonte familiarizada com os serviços de inteligência, o FBI tem uma investigação ativa aberta sobre o caso.
As agências de informação do país e da Holanda trocaram informações sobre Cherkasov há algum tempo, de acordo com um representante dos Estados Unidos, embora não seja claro quando isso ocorreu.
Outra fonte oficial norte-americana disse que não iria contar a forma como a conexão russa surgiu, acrescentando que o FBI trabalhou em estreita colaboração com as autoridades holandesas.
A revelação da verdadeira identidade de Cherkasov tem revoltado o corpo docente da SAIS. Mas, para ex-membros dos serviços de inteligência, Cherkasov enquadra-se num padrão bem conhecido: a Rússia, entre outras potências estrangeiras, procura colocar os jovens agentes de inteligência em instituições acadêmicas norte-americanas para ajudar a construir suas identidades secretas.
Muitas vezes, a missão dos chamados “ilegais” (um espião operando sob uma identidade sem nenhuma ligação com o governo russo) é fazer pouco mais do que simplesmente estabelecer sua legitimidade como estudante, como contou John McLaughlin, um ex-vice-diretor da CIA que agora ensina na SAIS.
“Não é incomum. A impressão que tenho é que passar pela SAIS foi uma espécie de experiência de lavagem de identidade para ele. Os ilegais russos tendem a passar por um longo processo de obtenção de credenciais a fim de estabelecer a credibilidade de quem eles afirmam ser”.
A SAIS se recusou a comentar o caso com a CNN. Mas, em um e-mail para professores e estudantes obtidos pela CNN, Jim Steinberg, reitor da SAIS, confirmou que Cherkasov se formou em 2020.
“Continuamos monitorando os desenvolvimentos, mas não temos mais informações para compartilhar neste momento”, escreveu Steinberg.
Cherkasov não respondeu a uma chamada telefônica e mensagem de texto enviados na sexta-feira (24).